8.2.07

Entre eles não havia indigentes!

1.A pobreza e a exclusão não são uma fatalidade. Quando os Actos dos Apóstolos falam de uma comunidade de voluntários “sem indigentes”, não pretendem elaborar uma teoria social. Os meios de comunicação social e seus comentadores andaram atarefados a preparar um discurso, ao Presidente da República, que desse um puxão de orelhas aos parlamentares, que carregasse bem as tintas nos avisos do Banco de Portugal, do FMI e da OCDE, para reforçar as oposições ao Governo. Cavaco Silva, sem nomear os factores que tornam o grupo dos ricos tão rico e o dos pobres tão pobre, limitou-se a olhar para o nosso país, fortemente marcado pelo dualismo do seu desenvolvimento, com persistentes e profundas desigualdades sociais.
Se decepcionou algumas expectativas políticas, também ficou muito aquém – e compreende-se – das exigências de inclusão inscritas nos Actos dos Apóstolos: “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava seu o que possuía, mas tudo era comum entre eles. Com muito vigor, os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus. E todos eles tinham grande aceitação. Não havia entre eles indigentes algum, porquanto os que possuíam terras ou casas vendiam-nas, traziam o dinheiro e colocavam-no aos pés dos apóstolos; e distribuía-se a cada um segundo a sua necessidade” (Act 4, 32-35).
Esta insistência na distribuição talvez não seja tão louca como a sua aparente ingenuidade pode sugerir. De qualquer modo, não era uma imposição à sociedade nem sequer aos membros da Igreja, ao contrário do que acontecia na comunidade, algo fundamentalista, de Qumrân. Era o resultado de conversões e opções pessoais. Reflecte, no entanto, a conhecida política distributiva de S. Lucas e apresentada como expressa vontade de Cristo: “Vendei os vossos bens e dai esmola. Fazei bolsas que não fiquem velhas, um tesouro inesgotável nos céus, onde o ladrão não chega nem a traça rói” (Lc 12, 33).
Perante certo homem de posição que desejava ir mais longe que os mandamentos, Jesus foi peremptório: “Uma coisa ainda te falta. Vende tudo o que tens, distribui aos pobres e terás um tesouro nos céus; depois vem e segue-me.”
Segundo o texto, ouvindo isto, o homem ficou cheio de tristeza, pois era muito rico, e Jesus exclamou: “Como é difícil aos que têm riquezas penetrar no Reino de Deus! Com efeito é mais fácil um camelo [corda que segura os barcos] entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!”
Os ouvintes – que desejavam ser ricos como toda a gente – perguntaram: “Mas, então, quem poderá salvar-se?” Jesus não fechou a porta: “As coisas impossíveis aos homens são possíveis a Deus” (Lc 18, 18-30).
Estamos, pois, em plena ordem teológica, espaço da liberdade e da utopia, e bem longe de um contrato meramente social. Cristo, retomando o Deuteronómio, tinha repetido que nunca faltarão pobres na terra para quem quiser ser generoso, mas a sua vontade é a de que não haja mesmo pobres, uns à mesa e outros à porta (Dt 15; Lc 16, 19-31).
2. Segundo Adam Smith, são escusadas as preocupações – religiosas ou laicas – com a inclusão social. Enunciou a sua famosa lei, em 1776: “Ninguém se propõe, em geral, promover o interesse público, nem sabe até que ponto o promove. Só pensa no seu próprio lucro, mas é conduzido por uma mão invisível a promover um fim que não entrava nas suas intenções. Ao procurar o seu próprio interesse, promove o da sociedade de uma maneira mais efectiva do que se este entrasse nos seus desígnios.”
Se isto fosse inteiramente verdade, bastaria garantir a livre concorrência e o bem comum da humanidade estava, automaticamente, assegurado. A fé neste dogma económico tem adeptos, mas não convence toda a gente. A discussão sobre modelos económicos e sociais é inevitável. Está na moda denegrir o modelo social europeu.
Para Jefrey D. Sachs, catedrático de Economia e director do Earth Institute da Universidade de Columbia, “se o mundo passasse mais tempo a analisar o que é que verdadeiramente funciona e o que não funciona, não fariam falta tantas discussões sobre economia. Debate-se, quase por toda a parte, como combinar as forças do mercado e a segurança social. A esquerda pede uma ampliação da protecção social; a direita diz que, ao fazê-lo, está a debilitar o crescimento económico e a aumentar os défices orçamentais. Mas podemos fazer com que o debate avance, examinando os bons resultados económicos da Dinamarca, Finlândia, Islândia, Holanda, Noruega e Suécia.
Embora nenhuma experiência regional seja directamente transferível, os países nórdicos souberam combinar a assistência social com níveis elevados de rendimento, um crescimento económico sólido e a estabilidade macroeconómica. Alcançaram também uma alta qualidade de governo. Existem, certamente, diferenças entre os países nórdicos, com uma despesa social superior na Dinamarca, Holanda, Noruega e Suécia e um pouco mais baixa na Finlândia e Islândia. Não obstante, enquanto os impostos nacionais nos EUA rondam os 20 por cento do PIB, nos países nórdicos a proporção é superior a 30 por cento. A fiscalidade elevada mantém, à escala nacional, a saúde, a educação, as pensões e outros serviços sociais, dando como resultado níveis baixos de pobreza e uma diferença de rendimento relativamente baixa entre as unidades familiares mais ricas e as mais pobres”.
O artigo continua as comparações, em pormenor, com vantagens sociais para os países nórdicos. O que me importa ressaltar é só isto: a pobreza e a exclusão não são uma fatalidade. Quando os Actos dos Apóstolos falam de uma comunidade de voluntários “sem indigentes”, não pretendem elaborar uma teoria social. Constroem uma incisiva parábola que devia fermentar a imaginação económica e financeira em função de um mundo solidário.
A esperança, como virtude, é para as causas difíceis.

Frei Bento Domingues, O.P. (in edição online do jornal Público)

[enviado por Jorge Mayer]