29.6.07

O suicídio assistido

Depois da liberalização do aborto até às doze semanas, seria de esperar que o tema da eutanásia fosse trazido à discussão pública. Neste caso, o principal argumento daqueles que defendem a eutanásia incide sobre o direito que o indivíduo tem, em determinadas circunstâncias ─ normalmente associadas a um forte sofrimento físico ou psíquico decorrentes de uma doença incurável ─ de poder decidir pôr termo à sua vida. Julgo que a morte não é em si um direito; antes uma inevitabilidade. Aquilo que todo o ser humano tem direito é de viver e morrer com dignidade.

Outro argumento para justificar a eutanásia corresponde “ao sofrimento da pessoa”. O sofrimento é muitas vezes visto como algo indigno, desumano, motivo de vergonha e que por isso deve ser banido a qualquer preço, pelo que a eutanásia passa ser a vista como um gesto de compaixão. Esta “piedade hipócrita” esconde, por vezes, uma injustiça e um sentimento egoísta, uma vez que considera que os mais fracos, as vítimas do infortúnio, aqueles que adoecem ou simplesmente envelhecem, já não têm lugar nesta sociedade. Ou seja, no caso de surgirem ideias de suicídio nestes indivíduos não se procura demovê-los, nem auxiliá-los. Nestas situações prevalece um espírito de complacência e compreensão, já que o sofrimento e o desespero em que se encontram conduzem automaticamente a um estatuto de “suicidas justificados”.

Então, mas não serão também estes os motivos que levam a maioria dos indivíduos a cometer o suicídio? O homem é o único ser vivo que reflecte sobre a sua própria morte. Na maioria dos países, excluindo o suicídio por motivos políticos ou religiosos mais extremistas, é consensual que o suicídio não deve ser encorajado, devendo-se proteger o indivíduo de causar a morte a si próprio. Afinal, por que é que não existe consenso à volta da eutanásia?

Desde Robbins (1959) verificou-se que mais de 90% das pessoas que se suicidam apresentavam alterações psicopatológicas. Deste modo, estariam privadas do discernimento necessário (em termos mentais) para avaliar em consciência e em liberdade, a decisão de se suicidarem. Sabemos ainda que, por detrás do desejo de morrer, existem várias doenças mentais tratáveis – como é o caso da depressão. Desta forma, a existência de um “suicídio racional” é algo questionável e a história dá-nos um exemplo extraordinário a este respeito: a esmagadora maioria dos prisioneiros dos campos de concentração, mesmo sendo submetidos a um sofrimento atroz e às mais diversas torturas, raramente se suicidavam.

Quase diariamente, os psiquiatras na sua actividade clínica confrontam-se com doentes que tentaram o suicídio ou que têm ideias de o vir a concretizar. A posição do psiquiatra é sempre a mesma: demover a pessoa, protegê-la de si própria, aliviar-lhe a angústia e transmitir-lhe palavras de esperança. Não se julgue, porém, que é sempre fácil fazê-lo, pois somos confrontados com situações dramáticas, horrendas em termos de violência psíquica e cujo sofrimento associado é incomensurável. Diante de tanta tragédia, e da nossa impotência, muitas vezes o papel do médico limita-se a acolher o sofrimento da pessoa. A escutá-la e a sofrer com ela. No entanto, tal como acontece com muitas doenças incuráveis, para as quais o avanço da medicina vai descobrindo novos tratamentos, também verificamos que as situações de tormento infindável muitas vezes acabam por ter uma solução. A pessoa depois de ajudada, recupera a alegria de viver e encontra um sentido para a vida.

A resposta à eutanásia está nos cuidados paliativos. É através desta visão humanista da medicina que se procuram solucionar os problemas decorrentes da doença prolongada, incurável e evolutiva, prevenindo o sofrimento que acarreta, proporcionando a maior qualidade de vida possível aos doentes e às famílias.

Os defensores da eutanásia ou, em sentido lato, do suicídio assistido, apresentam-na como um acto de misericórdia e de compaixão perante o sofrimento de um doente vítima de uma doença grave e incurável. Chegam a ser os próprios familiares que a incitam e reclamam. Transmite-se assim a ideia de que, em determinadas circunstâncias dramáticas, ajudar alguém a pôr fim à sua vida é um acto de caridade e de amor, quando é aí que reside a grande hipocrisia da eutanásia.A eutanásia não é uma prova de amor, mas antes o testemunho egocêntrico da sua rejeição.

Pedro Afonso
Psiquiatra

In Jornal Publico - 28. 06. 2007

28.6.07

Rezar para quê? Repensar a oração da petição

Não há palavras, diante de pais em choro pela perda de um filho: "Tanto pedimos a Deus que nos salvasse o nosso filho, e ele não nos ouviu!..."

Uma vez, uma senhora ainda jovem, muito doce, a quem a mãe morrera seca com o sofrimento, atirou-me: "Sabe? Às vezes penso que Deus não pode ajudar a todos. São tantos a pedir... Coitadinho!..."

É verdade: Deus não pode ouvir as orações todas nem satisfazer todos os pedidos.

O teólogo Andrés Torres Queiruga disse-o de modo chocante, quase brutal, mas, para o crente reflexivo, verdadeiro. Tomemos como exemplo esta oração: "Para que as crianças de África não morram de fome, oremos ao Senhor." "Objectivamente, uma petição deste tipo implica o seguinte: 1. que nós somos bons e tentamos convencer Deus a sê-lo também; 2. que Deus está passivo enquanto o não convencermos, se formos capazes; 3. que, se, no domingo seguinte, as crianças africanas continuarem a morrer de fome, a consequência lógica é que Deus não nos ouviu nem teve piedade; 4. que Deus, se quisesse, podia solucionar o problema da fome, mas, por um motivo qualquer, não quer fazê-lo." Conclui: "Sem pretendê-lo conscientemente, mas presente na objectividade do que dizemos, estamos a projectar uma imagem monstruosa de Deus: não só ferimos a ternura infinita do seu amor sempre disposto a salvar como, além disso, acabamos por dizer implicitamente algo que não nos atreveríamos a dizer do mais canalha dos humanos."

Quando se reflecte, percebe-se claramente que a chamada oração de petição exige ser repensada. Deus, porque é Força criadora infinita, não intervém de fora, e quem acredita que Deus é Amor não pode estar a implorar-lhe que tenha piedade. Fazê-lo é contradizer-se.

Compreende-se - isso sim - que o crente, na sua dor e frente ao horror do mundo, ore, fazendo perguntas e gritando com Deus. Job, sentindo-se inocente, queria levar Deus a um tribunal que julgasse com independência. Está na Bíblia! Jesus rezou na cruz: "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?" E, como sabia o teólogo protestante Dietrich Bonhoeffer, executado pelo nazismo, o crente terá cada vez mais de aprender a "viver diante de Deus e com Deus sem Deus".

Não há Homem religioso que não reze. Mas, como diz o Evangelho, é preciso pedir o que a maior parte das vezes se não quer pedir: o Espírito Santo e a conversão. Na verdade, não se trata de converter Deus à vontade humana e aos seus caprichos, ao seu orgulho e vaidade, à sua avareza e ganância, mas de o Homem se converter ao que Deus quer: simplicidade, capacidade de partilha, humildade, paciência e todas aquelas virtudes que já não estão muito em uso, mas tornam o Homem humano e trazem paz.

Quem não deseja ardentemente estar com o Amor? Rezar é marcar encontro com Deus, Anti-mal e Fundamento de todo o ser - Deus é Presença intimíssima e infinitamente activa em todo o real. Nesse encontro, o Homem faz então a experiência da religação à Fonte criadora e dinamizadora de tudo, reconcilia-se com a finitude e, depois de ter descido ao mais profundo, volta ao quotidiano da vida com esperança e serenidade, aquela serenidade de que fala Santa Teresa de Ávila: "Nada te perturbe. Nada te espante. Tudo passa. Deus não muda. A paciência tudo alcança. Quem tem Deus nada lhe falta. Só Deus basta."

No entanto, a serenidade não significa passividade nem resignação. Pelo contrário, quem foi ao encontro do Deus que, como diz o Evangelho, mora no oculto, "identifica-se" com ele e com o seu amor e entrega-se ao cuidado da sua obra, a começar por quem mais precisa: o pobre, o escarnecido, o humilhado, o doente, o chicoteado, o velho, o deficiente, qualquer um que sofre. Afinal, é mesmo possível, por exemplo, nós acabarmos com a fome em África!

O Evangelho diz que Deus sabe do que os seres humanos precisam, antes de lho pedirem. Por isso, previne contra o longo palavreado vão de quem reza. Manda é o silêncio e a paz interior, para que ele possa entrar: "Tu, quando orares, entra no teu quarto, e, fechada a porta, reza em segredo a teu Pai."

Anselmo Borges