ESPAÇOS, TEMPOS E SILÊNCIOS
o estilo da vida contemplativa
Já citei várias vezes neste livro, Dogen, uma das grandes figuras do budismo Zen japonês. Morreu somente com 53 anos, mas deixou uma grande esteira de influência. Com este religioso e pensador podemos aprender a encontrar o mais sublime no interior do quotidiano. Porém, enquanto jovem, viajou até à China em busca de Sabedoria, tendo-se deparado com três decepções, as quais resumem a sua aprendizagem.
A primeira decepção de Dogen foi a resposta que recebeu de um Mestre famoso, quando lhe solicitou ser admitido como seu discípulo. Dogen estava profundamente convencido que tinha encontrado o Mestre que buscava: autêntico, sábio e santo. Queria permanecer a seu lado para aprender. Mas o Mestre recusou. Aparentemente, estaria muito ocupado. Nunca, Dogen, teria estranhado se as alegadas ocupações fossem trabalhos intelectuais ou exercícios ascéticos, pregações ou meditações. Ficou estarrecido ao ouvir dos lábios do Mestre a razão para a sua falta de tempo. Este ano era a sua vez de trabalhar no refeitório, diariamente. Portanto, não tinha tempo. Dogen permanecia estarrecido. Na sua mente de principiante não podia imaginar a altura dum mestre e a profundidade dum místico na mesma pessoa agora dedicada a um ofício simples e vulgar: limpar mesas, varrer migalhas, lavar pratos. Passaram-se os anos e, ao cabo de algum tempo, Dogen compreendeu o que se escondia por trás de tanta simplicidade. Para descobrir o absoluto há que aprender a olhar o prosaico e o quotidiano das coisas relativas. Será este um dos temas centrais da sua obra ‘A Arte de Olhar’ [em japonês, shooboogenzoo] .
A segunda decepção de Dogen foi o longo compasso de espera que o Mestre lhe propusera – tinha a sensação de estar a perder tempo, braços cruzados sem fazer nada. Para alguém, como Dogen, grande talento e capacidade intelectual, com enorme capacidade para aprender línguas e dotado para assimilar culturas estrangeiras, os modos do Mestre impacientavam-no. Cuidava que o seu Mestre lhe ofereceria abundantes leituras nas quais mergulharia orientado por ele ou lhe facultaria temas sobre os quais poderia pensar e escrever. Mas o Mestre insistia em algo que lhe parecia ser a inacção mais pura e sem sentido: simplesmente, sentar-se a contemplar, sem meditar em nada, «sentar-se a pensar o não-pensar». Tão só. Apenas teria que passar horas inteiras nessa aparente inactividade. Só passando por aí se lograria sair de si e “abrir-se de corpo inteiro à iluminação”. Só para perceber isto, Dogen levou anos. Por fim, compreendeu, a partir desta experiência prática, que nesta lenta espera e neste aparente não-fazer-nada se escondia o segredo dum caminho: um sendeiro pelo qual progredimos sem nos movermos, movemo-nos permanecendo quietos e se acelera indo tudo muito devagar.
Chegou, então, a terceira decepção. Era-lhe muito penoso suportar os incompreensíveis silêncios do Mestre! Tinha-se deslocado do Japão à China disposto a tirar todo o partido para aprender o máximo. Sempre se fazia acompanhar, para onde quer que fosse, de pincéis e tinta, a fim de tomar nota de tudo com boa caligrafia. Pensava regressar ao seu país carregado de apontamentos que logo logo frutificariam quando se difundissem entre os seus futuros discípulos. Aqueles eram tempos em que a caligrafia era exaltada. Se fosse hoje, a sua pasta estaria repleta de disquetes e CD-Room. Mas, Dogen, teve de se desenganar. Demorou, mas, ao fim e ao cabo, percebeu a Sabedoria que se oculta no provérbio antigo: “Aquele que sabe, cala-o: palrador, sinal de que não sabe.” E regressou ao Japão sem apontamentos por aí além, mas com o corpo embebido em Sabedoria. À custa disso se publicaram, depois, abundantes páginas suas, estenografadas por seus discípulos, facto nunca por si pretendido. Mas, até chegar aí, teve primeiro de renunciar à ansiedade de devorar leituras e produzir escritos. Era a terceira negação, a companheira da terceira decepção.
Assim, e em pinceladas breves, temos os traços principais duma tela que decora a sala de espera da espiritualidade oriental: o quotidiano, o lento e o calado. Dito de outro modo: os espaços da vida diária, os tempos recheados de pausas e o discurso prenhe de silêncios. Nestes três traços temos resumida toda uma tradição sapiencial, que circula pelas mais diversas formas de religiosidade oriental e por filosofias que a expressam também. Desenvolvamos estes tópicos.
QUOTIDIANIDADE
Comecemos por nos fixar no primeiro destes temas: a fundura do quotidiano. Recuemos ao século oitavo e visitemos o monge Kuukai [774-835]. Se chegarmos lá, ao mosteiro, a meio da manhã, não o distinguiremos de um camponês que lavra sua terra ou abre um sendeiro. Se chegarmos a meio da tarde, talvez ele nos pareça totalmente outro: correctamente sentado diante da carteira, rigorosamente vestido com um kimono, esmerando-se, com um pincel, na caligrafia japonesa. Se fosse manhã, surpreendê-lo-íamos sentado em postura de lotus, durante largas horas de meditação. No seu dia-a-dia, conjugava, pois, trabalho manual, contemplação e estudo. Ajudava os camponeses a abrir poços e a construir represas; era um dos melhores calígrafos do país, servindo-lhe, a sua escrita, de veículo para um pensar profundo, plasmado em extensas obras. Mas, no fundo no fundo, ele era um contemplativo.
Esta é a pessoa que escreveu isto: “Se Buda não estivesse presente em cada tufo de erva e em cada folha de árvore, como poderia luzir sua verdura?” E, sempre que alguém duvidasse da imanência do absoluto no quotidiano, acrescentava: “A verdade está demasiado perto de nós e, por causa disso, raramente a percebemos com nitidez”.
O patriarca do Zen, Dogen, também insistia no óbvio do absoluto a um tempo próximo e afastado, familiar e intangível. Após o seu regresso da China, dizia que o resultado da sua aprendizagem se resumia a saber que a linha do nariz era a vertical e a dos olhos a horizontal. Procurava, assim, ajudar o seu interlocutor a encontrar o profundo no imediato, o absoluto no relativo e o divino no quotidiano.
É sintomática, aliás, a ligação que existe, nestas tradições orientais, entre a vivência funda da identificação com a natureza e o descobrimento do valor eterno do quotidiano. O poeta Bashô [1644-1694], a partir da noção de “capacidade para dar à luz formas sempre novas”, percebia a natureza como um movimento indistinguível do conjunto do universo, o qual, de modo lento e mudo, faz nascer, a cada dia e em cada lugarejo, milagres de novidade. Olhamos atentamente uma planta e não somos capazes de a ver crescer, ainda que a cada momento ela cresça. Ao cabo de uns dias damo-nos conta que floriu. Fê-lo de modo lento, calado e quotidiano. Tratamos de descobrir esse milagre e espantamo-nos: quanto mais comprido o poema, pior é; quanto mais breve, mais evocativo em seu silêncio condensado: “não lhe toques, que assim é a rosa”, teria dito outro poeta, ocidental, que tinha muita mais alma oriental do que ele própria suspeitava...
Uma das palavras com que em japonês nos referimos à natureza não tem nada de abstracto. Está composta por três pictogramas que significam, respectivamente, “neve”, “lua” e “flores” [setsu-getsu-ka]. Os copos de neve realçam o que cobrem, com formas inéditas, desde a sebe do jardim até aos caixotes do lixo. São símbolo dum quotidiano embelezado. A lua, com as suas fases, convida-nos a referirmos tudo e todos à lentidão de um movimento, movimento esse que avança independente da nossa vontade. E as flores, reunindo seu encanto e sua fugacidade, convidam-nos a calar admirando a maravilha do efémero. “Neve”, “lua”, “flores” é uma frase emblemática de toda a filosofia de identificação com a natureza através do quotidiano, do lento e do calado. A neve antecipa a primavera que se está gestando sob o seu brando manto. A lua-quarto-crescente é anúncio de lua-cheia. Os botões prenunciam o esplendor da floração. É todo um movimento de criatividade.
LENTIDÃO
O equivalente japonês do termo latino lente festina, [«apressa-te devagar»], diz-se de modo parecido: “se tens pressa, vai dar uma volta”. Em castelhano, dizemos: “vísteme despacio, que tengo prisa” ou “no hay atajo sin trabajo”. Na tradição do artesanato japonês fala-se de “atitude de artesão” como de um estilo e modo de trabalhar próprio de quem põe nisso toda a sua alma, gastando tempo em cada detalhe da sua obra, produzindo cada objecto como se fora exemplar único. O exemplo típico que se pode referir é o da cerâmica. Cada taça é distinta tal como surge, mesmo com seus defeitos, obra conjunta do fogo e do artesão. Mas, antes de conseguir essa obra prima, o artesão tentou-o centenas de vezes sempre do mesmo modo, rejeitou muitos produtos-não-conseguidos, numa palavra, gastou muitíssimo tempo.
“Quem planta palmeiras não come bagas delas”, diz-se na cultura levantina. Em Portugal: “Quem planta pessegueiros não deixa p’ra terceiros”. Desfrutarão, as gerações vindouras, do fruto de um esforço vasto e anónimo. No Ocidente, a construção das catedrais é um exemplo concludente. No Oriente, atrai-nos, a atenção, os pagodes em que, sem um único prego nem apoios metálicos, se fizeram milagres arquitectónicos com base apenas em encaixes de madeira. Porém, houve que usar madeiras centenárias, bem cortadas e preparadas. Nem imaginamos a quantidade de tempo e o esforço anónimo que está por trás de cada um deles.
Recordo a conversa com um jardineiro de uma vila de recreio imperial no norte do Japão. “Vê estes pinheiros todos retorcidos?”, dizia-me ele. “A sua mais bela imagem é a que oferecem quando se vergam, sem quebrar-se, ao peso da neve”. “Não precisam de estacas?”, perguntei-lhe. Explicou-me: “Custou muito esforço e muitos anos até se conseguir uma curvatura como a deste ramo. Desde que o pinheiro começou a crescer, foram podando-o com habilidade. Se o ramo está comprido demais, cairá ao peso da neve; se ficar muito curto, não produzirá um efeito tão belo”. Diante do meu espanto mudo, o jardineiro ria-se e repetia-me: “É tudo uma questão de fazê-lo devagar, senhor; dar tempo ao tempo e... muita paciência”.
Não se acelera o crescimento duma planta puxando-a com força para cima: assim, só conseguiríamos arrancá-la e desenraizá-la. Todo o organismo vivo tem seu ritmo. O espírito do taoismo só tem que se sintonizar com o Tao, caminho que a tudo orienta. “Deixa que tudo siga o seu curso natural”. Estamos convidados, assim, a abandonar o nosso egocentrismo, a viver em comunhão com a natureza e a descobrir o Caminho no prosaico e no quotidiano, enquanto caminhamos... lentamente.
Para a atitude ocidental da pressa e da aceleração é dificilmente aceitável o convite taoista ao «não-actuar». Provoca rejeição, pois parece que se trata de não fazer nada e deixar-se de braços cruzados. Mas não é. Pelo contrário, trata-se de nos conscientizarmos do muito que se pode fazer deixando que isso se faça por si, deixando estar as coisas aí e deixando passar os acontecimentos. Sobretudo, deixando que as pessoas sejam...
Quando se introduziu o budismo no Japão, interiorizou-se uma maneira primitiva [xintoísta] de perceber a transcendência da natureza e relacionou-se isso com o modo natural de vida quotidiana. Não se tratou apenas de procurar mergulhar na natureza e identificar-se com ela. Foi, pelo contrário, todo um processo de descobrir o que é natural, tanto na natureza como nas pessoas e até dentro de mim mesmo. Nesta problemática vemos confluir o sentido xintoísta da natureza, a mentalidade do Tao e o ethos confucionista da prática, juntamente com o sentido budista de descobrir o absoluto latente dentro de nós mesmos. É por isso que a contemplação não é uma evasão a partir do momento em que o espectador consegue captar a natureza, mas é algo que se vive no interior do quotidiano e se reflecte no artesanato, na poesia ou nas relações humanas: um modo de euritmia com a natureza, de encastramento com ela, reverenciando-a ao mesmo tempo que a transformamos.
SILÊNCIOS
Na igreja de Yamaguchi, no alto da colina, assistia à missa uma simpática anciã que jamais faltava aos domingos, com seu kimomo à moda antiga. Transpirando no verão e protegendo o pescoço no inverno, subia, em passitos curtos, a encosta para que chegasse sempre antes do início da missa. No fim, sempre alguém lhe oferecia boleia para descer, mas ela sempre recusava. Um dia explicou-nos porquê. “Prefiro descer pela encosta da colina que vai dar ao jardim do templo budista. Ali, a meio caminho, sento-me e respiro fundo à sombra das árvores. Ali, entre a paz e o silêncio daquelas árvores centenárias, é que verdadeiramente se encontra a Deus...”. “E – acrescentou logo de seguida– “libertamo-nos do cansaço da missa e do sermão...”. Perante o nosso desconcerto, concluiu: “É que na missa, –vocês bem o sabem– há tantas palavras seguidas... são tantas as palavras...!”
Um dito favorito dos monges Zen, reza assim: “Não pintes pernas à serpente”. A serpente é o animal mais fácil de pintar por uma criança mesmo que pequena. Basta traçar uma curva, mas os adultos estragamo-la acrescentando pormenores e matizes. A serpente vira centopeia. Algo parecido acontece no meio eclesiástico-teológico ocidental, com o seu excesso de palavras. As palavras de Dogen, acima citadas, aquando do seu regresso da China ao Japão, resumiam o resultado dos seus cinco anos de estadia, dizendo: “Não trago apontamentos. Venho da China com as mãos vazias. Mas alcancei que a linha do nariz é a vertical e a dos olhos é a horizontal.” Ao falar assim, não estava só a falar, mas a viver em parábolas.
Também Jesus desconcertava o seu auditório ou o seu interlocutor, respondendo a uma pergunta teórica [“Salvam-se muitos?”] com uma resposta parabólica e, ao mesmo tempo, paradoxal [“Trata de entrar pela porta estreita”]. Um monge budista a quem perguntaram o que é a Verdade, respondeu: “Que roxas são as flores! Que verdes são os salgueiros!”. E àquele que queria saber quem era o seu próximo, Jesus contou a parábola do Bom Samaritano...
Mas bastará dizer que o nosso ocidental excesso de palavras é o extremo do silêncio oriental? Pensar assim será muito limitado. Tanto uns como outros necessitariam de reflectir mais fundo sobre a pluralidade da linguagem humana e as atitudes a isso subjacentes .Pergunto: não haverá uma atitude de superioridade na segurança com que presumimos dos êxitos logocêntricos da nossa cultura? Não basta juntar uns quantos textos místicos europeus e alinhar umas quantas palavras de S. João da Cruz ao lado de outras da tradição budista. Para lá do comparativismo, precisamos, na verdade, de aprender a calar a boca quanto à questão de Deus, para que Ele se possa fazer ouvir entre nós.
Até aqui, evoquei três aspectos da tradição oriental, evidenciados sobretudo pelo budismo Zen, o qual nos convida a ficar em silêncio para saborear o eterno no instante quotidiano. Não foram mais do que traços ‘à vol d’oiseau’, simples evocações e sugestões. Procurei nestas pinceladas sublinhar os traços emblemáticos do episódio de Dogen com que abri. Em resumo: saborear o eterno e o absoluto nas pausas e nos silêncios da vida quotidiana.
O quotidiano, o lento e o calado são o emblema de toda uma espiritualidade. Creio que poderíamos aprender com o Oriente, neste aspecto. Aprender a descobrir o valor eterno do doméstico e do quotidiano, o “Deus entre os púcaros” de Teresa de Jesus. Aprender a unir eterno e presente, introduzindo na nossa vida pausas e espaços de receptividade. Aprender a escutar no silêncio, a calar sobre o absoluto como uma das melhores formas de expressá-lo. Domesticidade quotidiana, pausas sensíveis e silêncios significativos seriam o caminho de toda uma espiritualidade do simples e da simplicidade.
[in, Caminos sapientiales de Oriente, por Juan Masiá Clavel, SJ, Ed. Desclée De Brouwer, 2002. [trad. : p. bateira]]